Como psicólogo clínico, lido com várias situações de sofrimento trazidas ao set terapêutico, algumas consideradas simples e outras não. Mas, foi durante um dos atendimentos que realizo voluntariamente em uma casa de recuperação para “dependentes químicos” que tive um caso peculiar, motivo pelo qual trago ao conhecimento dos leitores.
Evidentemente, o sigilo absoluto sobre a pessoa atendida é mantido, por isso a descrição desse caso será didática, sem maiores detalhes. Chamaremos o meu cliente de João, embora não seja o seu nome verdadeiro.
A dependência química nem sempre é o que parece
João está em tratamento contra o que chamamos convencionalmente de “dependência química”. Ele já passou por outros centros de recuperação, mas sem sucesso. Atualmente com 42 anos, ele utiliza drogas desde a sua adolescência, mas foi durante a juventude que o abuso das substâncias se tornou evidente.
Sempre há um fundo emocional no desenvolvimento das nossas dependências (no plural, sim!), e é por ele que me interesso, nunca pelo objeto da dependência por si só. Assim foi o meu primeiro contato com João, uma busca.
João tentou explicar sua dependência química por vários ângulos. Os mais comuns são a busca por prazer, influência dos amigos, curiosidade e oportunismo. Nenhum deles, porém, pareceram suficientes para mim. Havia algo que, embora não dito, estava estampado no semblante de João.
A maneira como ele selecionou às palavras, sempre carregadas de muita intensidade ao se expressar, além de um rosto com linhas faciais marcantes e um olhar profundo de desconfiança, me disseram que algo além das explicações convencionais poderia existir.
Às consequências de um luto não superado
Uma palavra! Apenas uma palavra foi suficiente para encontrarmos, juntos, o caminho para compreender melhor a relação de João com os entorpecentes. Perguntado sobre como ele enxerga sua dependência, ele disse que a enxerga como uma “ferida”.
Como assim, “ferida”? Lhe perguntei.
__Há… é como uma ferida aberta, né? A minha ferida é a droga.
Me parece que quando você utiliza a palavra “ferida” e diz que ela está aberta, você está querendo dizer outra coisa. Há outras feridas que continuam abertas na sua vida?
(um momento de silêncio acompanhado por um semblante de surpresa, em João)
__ Acho que sim. Tem umas coisas ai que ficam na gente, né? Eu penso todos os dias.
É uma coisa que você não consegue esquecer, e por isso pensa constantemente?
__ Vixe! É impossível não pensar. Todo dia, todo dia eu penso e fico até sem dormir.
Gostaria de falar sobre isso?
__ Então… eu perdi o meu irmão.
O irmão de João era adolescente quando foi morto por uma abordagem errada de um policial militar. Ele também era usuário de droga e recebeu um tiro quando tentou fugir da abordagem. João estava trabalhando na ocasião.
João pensou em se vingar. Teve a oportunidade algumas vezes, mas entendeu que isso não traria de volta o seu irmão e traria mais sofrimento para a sua família. Questionado se sentia culpa por algo que gostaria de ter feito, no primeiro momento ele disse que não.
Desde então João focou no sofrimento pela perda do irmão em nossa conversa. “Essa é a minha grande ferida”, disse ele, reconhecendo que ainda não havia superado e que precisava “enterrar o passado” (palavras dele), apesar do incidente ter acontecido 27 anos atrás.
Aceitação e responsabilidade envolvendo o luto
O caso de João revela algo comum nas pessoas que passam por situações de luto: a dificuldade de aceitação e o sentimento de responsabilidade diante do acontecido.
Será que eu poderia ter evitado? Até que ponto eu poderia fazer a diferença? Será que tive culpa? Por que eu não estava lá? Eu não deveria ter feito isso, àquilo, etc. Estes são os questionamentos mais comuns que passam na cabeça de quem mais sofre.
O desejo de não querer se despedir nos faz questionar constantemente o que poderia ter sido diferente. Por isso é comum a sensação de “responsabilidade” em algumas situações, especialmente quando o falecimento ocorre em contextos de muito envolvimento emocional.
João também reconheceu a existência desses pensamentos. Pensativo, ele implicitamente vem durante anos cultivando um sentimento de “mágoa” e “frustração” diante do que aconteceu.
“Talvez, se eu estivesse lá com ele, na hora, por ser mais velho eu não teria reagido da forma como eles reagiram, né? Ai seria diferente”, disse ele. Na prática, João ainda possui a sensação de culpa por não ter estado com o irmão no momento do incidente.
“Mas foi como Deus quis, né? Eu não podia fazer nada…”, reconhece ele, após refletir sobre a sua responsabilidade.
Entender o falecimento como algo inevitável e, por mais duro e estranho que pareça, como algo que faz parte da existência humana, é o caminho para a aceitação da perda. O luto precisa ser aceito como ele é, um momento de dor, mas também como algo que escapa ao nosso controle.
João não aceitou a morte do seu irmão durante quase três décadas! Isso ocorre porque a nossa mente é “atemporal”. Isto é, ela não está restrita ao tempo e espaço. Transitamos entre o passado e o presente, podendo até elaborar o futuro.
João envelheceu e procurou se adaptar ao luto. Aqui temos algo importante para entender: adaptação não é superação. É necessário superar o luto e não apenas se adaptar a ele.
A relação de João com às drogas foi uma tentativa de se adaptar a um luto não superado. “Queria esquecer”, disse ele ao explicar o motivo das suas recaídas. Dependendo do contexto, a superação exige algumas adaptações, mas é preciso avaliar se elas são nocivas ou sadias e até que ponto apontam para a capacidade de superação.
Quando uma adaptação não é sadia ela trás consequências negativas para nossas vidas. No lugar de acrescentar coisas boas, aumenta às ruins. Tais adaptações geralmente são frutos da inabilidade emocional de lidar com o próprio sofrimento.
O que para João foi a droga, para outras pessoas pode ser a dificuldade de manter relacionamentos, dar prosseguimento em uma carreira, estar presente na vida dos filhos ou ter uma vida fisicamente saudável. Há inúmeras “drogas”. Depressão, ansiedade e uma cartela de medicamentos também podem assumir esse lugar.
Superação também é decisão
João disse que não havia conversado sobre isso anteriormente. No final da conversa, sua dependência química já não era mais o foco da análise, mas sim o luto por décadas não superado. “Eu realmente preciso deixar o passado para trás”, disse ele.
Ao reconhecer que sua “ferida” é o luto não superado, e que por décadas ele veio tentando se adaptar à lógica do sofrimento, João entendeu que seu irmão, “agora com Deus no céu”, gostaria de vê-lo superando o luto para que possa ser feliz.
Viver tudo o que seu irmão não viveu e ser feliz como ele gostaria de ter sido, foi o entendimento final de João, a sua decisão: “Eu sei que consigo. Ou melhor, eu já consegui, em nome de Jesus”, disse ele em nossa despedida.
A decisão de superar o luto é necessária. Leva tempo e cada pessoa tem o seu. Um passo de cada vez, aos poucos, vamos ganhando força para encarar o dia-a-dia. Recorrer para ajuda profissional, como bons psicólogos, pode ser uma boa escolha. A fé, porém, é a maior aliada.
Dizer para si mesmo quando tudo estiver muito pesado “eu não consigo sozinho(a)” é fundamental, porque isso te permite buscar ajuda e a evitar assumir cargas que você não consegue só. Esse reconhecimento não é sinal de fraqueza. Pelo contrário, é o início de um fortalecimento maior.
Quem possui fé é importante procurar compartilhar a sua dor com pessoas capazes de lhe acolher emocional e espiritualmente. Acredite, pode parecer insuportável, mas você possui todas às ferramentas necessárias dentro de si para superar essa dor, só precisa querer encontrá-las.